sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre José Saramago

Morreu hoje 18/06 o escritor português José Saramago.
Considerado um dos maiores escritores contemporâneos.
Ganhador de um prêmio nobel de literatura em 1998, José Saramago uniu a atividade de escritor e crítico da sociedade, denunciando injustiças e se pronunciando sobre conflitos políticos.
Aproveitando que estamos vivendo a disputa da copa do mundo na África do Sul, veja a seguir o que Saramago escreveu sobre o continente africano.

Saramago sobre a África

“Em África, disse alguém, os mortos são negros e as armas são brancas. Seria difícil encontrar uma síntese mais perfeita da sucessão de desastres que foi e continua a ser, desde há séculos, a existência no continente africano.

O lugar do mundo onde se crê que a humanidade nasceu não era certamente o paraíso terrestre quando os primeiros “descobridores” europeus ali desembarcaram (ao contrário do que diz o mito bíblico. Adão não foi expulso do éden, simplesmente nunca nele entrou), mas, com a chegada do homem branco abriram-se de par em par, para os negros, as portas do inferno.

Essas portas continuam implacavelmente abertas, gerações e gerações de africanos têm sido lançados à fogueira perante a mal disfarçada indiferença ou a impudente cumplicidade da opinião pública mundial. Um milhão de negros mortos pela guerra, pela fome ou por doenças que poderiam ter sido curadas, pesará sempre na balança de qualquer país dominador e ocupará menos espaço nos noticiários que as quinze vítimas de um serial killer.

Sabemos que o horror, em todas as suas manifestações, as mais cruéis, as mais atrozes e infames, varre e assombra todos os dias, como uma maldição, o nosso desgraçado planeta, mas África parece ter-se tornado no seu espaço preferido, no seu laboratório experimental, o lugar onde o horror mais à vontade se sente para cometer ofensas que julgaríamos inconcebíveis, como se as populações africanas tivessem sido assinaladas ao nascer com um destino de cobaias, sobre as quais, por definição, todas as violências seriam permitidas, todas as torturas justificadas, todos os crimes absolvidos.

Contra o que ingenuamente muitos se obstinam em crer não haverá um tribunal de Deus ou da História para julgar as atrocidades cometidas por homens sobre outros homens. O futuro, sempre tão disponível para decretar essa modalidade de anistia geral que é o esquecimento disfarçado de perdão, também é hábil em homologar, tácita ou explicitamente, quando tal convenha aos novos arranjos econômicos, militares ou políticos, a impunidade por toda a vida aos autores diretos e indiretos das mais monstruosas ações contra a carne e o espírito.

É um erro entregar ao futuro o encargo de julgar os responsáveis pelo sofrimento das vítimas de agora, porque esse futuro não deixará de fazer também as suas vítimas e igualmente não resistirá à tentação de pospor para um outro futuro ainda mais longínquo o mirífico momento da justiça universal em que muitos de nós fingimos acreditar como a maneira mais fácil, e também a mais hipócrita, de eludir responsabilidades que só a nós nos cabem, a este presente que somos.

Pode-se compreender que alguém se desculpe alegando: “Não sabia”, mas é inaceitável que digamos: “Prefiro não saber”. O funcionamento do mundo deixou de ser o completo mistério que foi, as alavancas do mal encontram-se à vista de todos, para as mãos que as manejam já não há luvas bastantes que lhes escondam as manchas de sangue. Deveria portanto ser fácil a qualquer um escolher entre o lado da verdade e o lado da mentira, entre o respeito humano e o desprezo pelo outro, entre os que são pela vida e os que estão contra ela. Infelizmente as coisas nem sempre se passam assim.

O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de servir os nossos interesses.

Em tais casos não podemos desejar senão que a consciência nos venha sacudir urgentemente por um braço e nos pergunte à queima-roupa: “Aonde vais? Que fazes? Quem julgas tu que és?”. Uma insurreição das consciências livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?"

Extraído do blog Pé na África, de Fábio Zanini, jornalista da Folha de São Paulo.

2 comentários:

  1. Certamente estamos mais órfãos do impulsionar a pensar... fosse para concordar ou discordar, ele sempre fazia "mudar" algo em nós, o que é precioso e falta em nossos dias.

    "Não escrevo para agradar e tampouco escrevo para desagradar.
    Escrevo para desassossegar."

    [José Saramago]

    Lendo-o, aprendi mais senso crítico, humanizei-me um pouco mais.

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  2. Que maravilha de comentário Katyuscia, é um incentivo a mais pra continuar minhas postagens.
    Adorei...

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